DO PENSAMENTO OFICIAL A ALGUMAS LINHAS DE FRATURA, SOBRE A GUERRA DA UCRÂNIA – UMA SÉRIE DE TEXTOS – I – INTRODUÇÃO: A IMPOSSIBILIDADE DE SE FALAR SOBRE A GUERRA FORA DO QUADRO ESTABELECIDO PELO PENSAMENTO ÚNICO, por JÚLIO MARQUES MOTA

 

Texto 1. Introdução. A impossibilidade de se falar sobre a guerra fora do  quadro estabelecido pelo pensamento único

 

Júlio Marques Mota

 

Acusam-me de putinista, lepenista, trumpista e há dias apenas acusaram-me também de nazi. Já depois deste texto escrito e de uma série preparada sobre os media e esquerda oficial vejo as declarações de Sua Santidade o Papa Francisco.  Não vejo diferença entre o que nos dizem do Vaticano e o que temos defendido no blog A Viagem dos Argonautas desde que rebentou a guerra., com a exceção da guerra por procuração que Sua Santidade não contempla. Qual o adjetivo que colocarão estes meus críticos quanto às palavras de Sua Santidade, o Papa?

 “Dizem-nos do Vaticano (original aqui)

 Aquilo que estamos vendo é a brutalidade e a ferocidade com que esta guerra está sendo conduzida pelas tropas, geralmente mercenárias, utilizadas pelos russos. E os russos realmente preferem enviar chechenos, sírios, mercenários. Mas o perigo é que só vemos isso, o que é monstruoso, e não vemos todo o drama que está se desenrolando por trás desta guerra, que talvez tenha sido de alguma forma provocada ou não impedida. E registo o interesse em testar e vender armas. É muito triste, mas no final é isso que está em jogo.

 Alguém pode me dizer neste momento: mas o senhor está a favor do Putin!

 Não, não estou. Seria simplista e errado afirmar uma coisa do gênero. Sou simplesmente contrário em reduzir a complexidade à distinção entre os bons e os maus, sem raciocinar sobre as raízes e os interesses, que são muito complexos. Enquanto vemos a ferocidade, a crueldade das tropas russas, não devemos esquecer os problemas a fim de tentar resolvê-los.”  Fim de citação

 Uma curiosidade: não vi o texto do Papa publicado na imprensa portuguesa. No jornal Público não vi uma linha sequer. Os que me criticam por pontos de vista inconvenientes que se questionem. Ou não terá Orwell razão?

 

Sobre a guerra da Ucrânia a diabolização continua e se não aceitarmos o discurso de mais armas, mais guerra, mais destruição humana, mais destruição de recursos, torna-se impossível falar com alguém que defenda esta tese, a tese oficial dominante a Ocidente nos dias de hoje. No fundo, esta tese diz-nos que o que é necessário é dar cabo dos russos, havendo quem tenha mesmo utilizado o verbo matar, é preciso é matar os russos e se não se concordar com isso, só tem de fazer uma coisa: ficar calado. Como muito bem diz o embaixador americano Charles Freeman relativamente ao discurso oficial dominante, é que “o preço a pagar para se falar sobre este assunto é juntarmo-nos às raparigas animadoras da claque num frenesim de apoio a [essa] posição, e se não fizermos parte do coro, não estamos autorizados a dizer nada, e não podemos cantar”.

Pedi a um destes interlocutores que substituísse russos por eslavos e depois substituísse eslavos por judeus. E a seguir, o que é que isto te faz lembrar, perguntei? Hitler, respondeu-me assustado! Pois é, é nisso que estamos a cair, lamento dizê-lo, ao afirmarmos que o que é importante é dar cabo dos russos ou dos eslavos, respondi eu.

Este é o ponto de vista geral que é defendido pelos media ocidentais, pelos seus respetivos governos e pela chamada opinião pública de cada país. A partir deste ponto de vista, a intervenção dos países ocidentais pode ser encarada e justificada por duas vias relativamente diferentes:

  1. encarar esta guerra apenas como uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia a que o Ocidente deve dar todo o seu apoio militar não colocando lá nenhuma bota militar sua.

  2. encarar esta guerra como uma guerra entre a Civilização (o Ocidente) e a Barbárie (simbolizada pelos eslavos a Leste) em que contra esta última o Ocidente se deve mobilizar a corpo inteiro.

Sobre estas duas justificações de continuar a guerra apresentamos dois textos, um de Matt Duss, conselheiro de Bernie Sanders, a defender a primeira via de análise, e um outro de Timothy Snyder, historiador e professor em Yale, a defender a segunda via. Face ao texto de Matt Duss apresentaremos dois textos como pontos de vista alternativos, um texto meu e um outro de Eric London e face ao texto do professor Timothy Snyder apresentaremos como pontos de vista alternativos um texto do coronel americano na reserva Andrew Bacevich e um outro de David North. Temos assim dois pontos de vista “oficiais” e para cada um deles dois outros textos de pontos de vista diferentes. O leitor que tire as suas conclusões.

O texto do professor Timothy Snyder apresenta o ponto de vista de um belicismo extremo, traçado a partir da sua ideia de Putin, de que este é um fascista, um novo Hitler. E o seu raciocínio é o seguinte: há os bons, os ocidentais, há os maus, os do lado de lá, os eslavos. E se não estamos na defesa dos do lado de cá, façam eles o que fizerem então é porque estamos a defender os de lado de lá, mesmo que nada tenhamos dito nesse sentido. O velho ditado do tempo de Salazar: quem não é por nós, é contra nós, e quem é contra nós é então comunista. Até aqui, esta é a base geral subjacente às duas vias acima enumeradas, subjacente ao raciocínio de todos aqueles que consideram que o Ocidente está limpo nesta história, fale-se do conselheiro de Bernie Sanders, Matt Duss, que consideramos representante da esquerda oficial americana, fale-se do professor Snyder. Este último avança um pouco mais na diabolização: Putin é igual a Hitler e a Rússia é fascista. Combatemos Hitler nos anos 40, temos que combater Putin agora, porque ambos são imagens um do outro. Neste raciocínio do professor Snyder as botas ocidentais não ficam de fora, pressupõe a guerra global! Este esquema de raciocínio é-nos veementemente exposto por Timothy Snyder no New York Times em 22 de maio de 2022.

Mas há aqui um dado curioso, muito curioso mesmo: este mesmo brilhante historiador, defensor agora da guerra global contra Putin defendia em 2003 e em fevereiro de 2010 pontos de vista bem diferentes! Vejamos:

  1. Em maio de 2003 publica em Past and Present um artigo intitulado “The Causes of Ukrainian-Polish Ethnic Cleansing 1943,”onde afirma relativamente aos ucranianos :

“No final de Abril de 1943”, segundo o relato de Snyder, “a UPA tinha talvez dez mil soldados sob o seu comando, e tinha reduzido grande parte de Volhynia a abate mútuo”. Snyder continuou:

“Durante todo o mês de Abril e em toda a Volhynia, os soldados da UPA cercaram colónias e aldeias, queimaram casas, alvejaram ou forçaram a voltar para dentro aqueles que tentaram fugir.

Em povoações mistas, os serviços de segurança da UPA avisaram os ucranianos para fugirem à noite e depois mataram todos os que restavam ao amanhecer. Este foi um ataque coordenado por homens armados contra uma população sem líderes e desorganizada.

  1. Em Fevereiro de 2010 escreve no New York Review of Books, um artigo intitulado A Fascist Hero in Democratic Kiev em que denunciou explicitamente o encobrimento dos crimes da OUN pelo então Presidente ucraniano Viktor Yushchenko.

Neste artigo afirma:

“O novo presidente ucraniano terá de olhar um pouco mais para a história, porque o presidente cessante acaba de fazer de um fascista ucraniano há muito tempo falecido, um herói nacional. Ao conferir a mais alta honra estatal de “Herói da Ucrânia” a Stepan Bandera (1909-1959) a 22 de Janeiro, Viktor Yushchenko provocou protestos do rabino chefe da Ucrânia, do presidente da Polónia, e de muitos dos seus próprios cidadãos”.

Neste mesmo artigo pode-se ler:

“Quando a Wehrmacht invadiu a União Soviética em Junho [em 1941], a eles juntaram-se os exércitos da Hungria, Roménia, Itália e Eslováquia, bem como pequenos contingentes de voluntários ucranianos associados à OUN-B.”

“Alguns destes nacionalistas ucranianos ajudaram os alemães a organizar pogroms assassinos de judeus. Ao fazê-lo, estavam a avançar com uma política alemã, mas que era consistente com o seu próprio programa de pureza étnica, e a sua própria identificação de judeus com a tirania soviética.”

“Sob o seu comando, a UPA comprometeu-se a limpar etnicamente a Ucrânia ocidental dos polacos em 1943 e 1944. Os partidários da UPA assassinaram dezenas de milhares de polacos, a maioria dos quais mulheres e crianças. Alguns judeus que se tinham refugiado com famílias polacas também foram mortos”. Fim de citação

Por razões que nunca explicou, nos meses entre o artigo de Fevereiro de 2010 na New York Review of Books e a publicação em Outubro de 2010 do seu livro Bloodlands, Snyder mudou radicalmente o seu relato da história ucraniana.

Snyder rejeita agora as referências ao fascismo ucraniano como sendo propaganda russa. No ensaio de 2010, escreveu que a descrição soviética de “fascistas alemães-ucranianos” era “suficientemente precisa para servir de propaganda duradoura e eficaz, tanto dentro como fora da União Soviética”.

As atividades da OUN desapareceram totalmente da narrativa ficcional fictícia e violentamente antissoviética que ele apresentou em Bloodlands e continuou depois daí, como se pode ver no artigo de opinião publicado no New York Times de maio de 2022.

Dir-se-á que Snyder tinha deixado de escrever história para passar a produzir propaganda para a política anti-Rússia dos Estados Unidos, assumindo agora uma posição belicista extrema e defendendo a guerra total contra a Rússia

O que é que se terá passado na cabeça deste autor, que é considerado um eminente historiador, pelo meio entre fevereiro de 2010 e outubro de 2010, altura em que escreve Bloodlands, isso é coisa que ninguém sabe. Sabe -se é que mudou de agulhas. Sabe-se é que para ele Putin passou a ser igual a Hitler e a Rússia passou a ser considerado um país fascista. Diz-nos que interviemos e combatemos Hitler, devemos fazer agora o mesmo com Putin, e esta é a sua tese publicada pelo New York Times em maio de 2022.

Este relato do que escrevia Snyder e do que ele escreve agora é realmente importante porque nos mostra à evidencia a máquina de propaganda que se criou para gerar o clima de diabolização e de belicismo a que temos assistido. Mostra ainda a conivência dos media nesta mesma máquina, e aqui não é inocente que o texto de maio tenha sido publicado pelo New York Times como texto de opinião. Do mesmo modo, relembramos aqui o caso do jornal Público que em 21 de Junho de 2020 publica uma reportagem de alta qualidade sobre o batalhão Azov e sobre o papel da Ucrânia como “campo de treino militar para a extrema-direita mundial” (título do artigo do Público de então) e que depois esqueceu-se  disso e embarcou  na máquina de propaganda de Washington-Kiev, tal como o New York Times,  como se nada tivesse antes publicado em sentido contrário.

Este relato de Snyder é igualmente importante porque explica bem como muitas das justificações que ouvimos no dia a dia são a sequência lógica desta mesma máquina de propaganda difundida à escala mundial. Desse ponto de vista a trajetória de Snyder e a sua espantosa mudança de posição teórica são de uma evidência assustadora.

Um exemplo desta sequência lógica vivi-o eu há dois dias. No final de um tarde bem quente estava eu numa esplanada com a disposição de acabar de ler o meu jornal Público desse dia. Eis que passa um conhecido meu, um homem que já foi um alto quadro do CDS e é hoje gestor público, que se senta na mesa para dois dedos de conversa, como muitas vezes já fez. Nada de especial, à partida, até que que se tocou na guerra da Ucrânia. E aí foi o inferno que se instalou na nossa conversa.

A lógica de mais armas para Zelensky significa mais guerra, mais destruição, mais mortes, mais complicações no futuro. A opção é agora descobrir e agarrar todas as hipóteses que nos possam levar à paz e não andar a colocar mais fogo na fogueira para que haja mais guerra, foi a minha posição de princípio que lhe expus e esta tem sido sempre a minha posição desde que começou a guerra. Ainda lhe falei nos acordos de Minsk, mas de nada valeu. “Esses acordos foram uma imposição que o Presidente Zelensky recusa. Nada a acrescentar. Não há discussão quanto á soberania da Ucrânia”, diz-me ele, a fechar a questão por aqui. A alternativa a esses acordos é a guerra, respondi. E a sua resposta chocou-me pelo belicismo que continha. “Bastava fazer com que a Polónia e a Roménia avançassem contra os russos: esmagávamo-los.” Bom, enquanto isso não se der, o que se quer é então enfraquecer o adversário mesmo que isso seja feito à custa do povo ucraniano e até ao último ucraniano! E até à custa da própria Europa, tão ferida ela sai desta história. É isso? E citei-lhe o embaixador Charles Freeman.” Heil Hitler, Heil Hitler”, foi a resposta que ouvi.

Face a esta cegueira belicista disse-lhe que não valia a pena esta conversa porque só iríamos caminhar de insulto em insulto e continuei: a questão é simples: as nossas premissas para análise desta guerra são opostas, as conclusões a que cada um chega têm que ser têm de ser opostas. Necessariamente assim. Vejamos:

  1. Defendes que a NATO é uma organização pacífica, eu parto de outra, de sentido oposto, a de que a NATO é o braço armado do imperialismo americano. Premissas opostas levam a conclusões opostas. És engenheiro, és matemático sabes que é assim. Com uma diferença de fundo, o teu pacifismo pressupõe que outros países, por decisão própria e não por procuração (!), assumam o belicismo que dizes não existir com a NATO enquanto instituição de paz. Desonestidade, pura e simplesmente é o que isso é, conclui eu.

  2. Tu partes da hipótese de que a guerra é entre a Ucrânia e a Rússia, eu parto da hipótese de que a guerra é entre os EUA e a Rússia, sendo a Ucrânia o espaço onde se faz essa guerra. Dito de outra maneira, trata-se de uma guerra por procuração mas preparada desde há muito tempo. Basta ler o relatório da Rand Corporation publicado em 2019, meu caro. Está lá tudo explicado, neste relatório, está a antevisão do filme de horror que estamos a viver.

  3. Na tua hipótese Zelensky tem que ser assumido como herói. Aliás tu dizes que ele rejeitou, logo de inicio da crise, uma proposta de saída da Ucrânia com garantia de asilo. Na minha hipótese, ele é um comediante de alta qualidade e esta é tanta que convence o mundo de que não há nenhuma guerra por procuração. Este é também o ponto de vista de Charles Freeman. Sendo uma guerra por procuração, tudo o que se diz em sentido contrário é  pura encenação na qual ele representa então, e com muita  arte, muitíssima mesmo, transformando o papel de valete dos Estados Unidos em herói ucraniano.  Isto é Arte, direi eu, isto é heroísmo, dirás tu. Vale a pena relembrar o que nos diz o embaixador Charles Freeman:

Ele é um ator que encontrou o seu papel, e provavelmente ajuda muito a Ucrânia ter um presidente que é um ator de sucesso, que veio equipado com o seu próprio pessoal de estúdio, que está a usar isso brilhantemente. E diria que o Sr. Zelensky foi eleito para chefiar um estado chamado Ucrânia, e criou uma nação chamada Ucrânia.  Ele é alguém cujo heroísmo percebido tem reunido os ucranianos a um nível que ninguém esperava, mas não sabemos para onde isto vai.

Discutiu-se muito sobre estes três pontos, com exclusão do relatório da Rand Corporation que este meu conhecido não teria lido e houve um único ponto de acordo, e mesmo esse, o de que os americanos, sempre eles, pois os europeus funcionaram sempre como valetes, terão cometido alguns erros (!) com Boris Eltsine.

Aproveitei a deixa para o questionar sobre a política selvagem imposta, é este o termo, que o Ocidente teve para a zona leste, praticando uma política militar belicista com a NATO, uma política de capitalismo selvagem onde a democracia tinha sido evacuada e isto tomando como base as Instituições Internacionais. Ainda me lembro de Gorbatchev a pedir esmola no G7 em Londres! A sua primeira reação foi mais ou menos esta: “vê lá, até se pensou colocar a Rússia na NATO. Vê lá tu! E estás tu com isso”. Pois é, isso é verdade, tratou-se de uma ideia aceite por Bush pai e rapidamente rejeitado pelo complexo industrial e militar na presidência Clinton, o presidente que desencadeou a expansão da NATO a leste e determinou os bombardeamentos na Europa de Leste- um cartão de apresentação do que é a NATO. Como se vê nos EUA o importante são as armas e, como se vê, tu também só pensas no mesmo tom. disse eu. E continuei: O que era preciso era um Plano Marshall para a zona leste, não armas, não privatizações em massa, não apropriação de recursos naturais. Pela ganância anglo-saxónica, sobretudo por estes, de assalto aos recursos da ex-União soviética no tempo de Ieltsin perdeu-se uma oportunidade histórica de refazer a Europa à De Gaulle, do Atlântico aos Urais, ou à Gorbatchev com a sua ideia de “casa comum europeia”. Em vez disso, em vez de construirmos as condições de paz, andámos a criar as condições de guerra, a que tivemos no final dos anos 90 na Jugoslávia e a que temos na Ucrânia, sobretudo a partir de 2014. É preciso saber-se como se chegou aqui, disse eu em forma de conclusão.

A partir daqui, choveram provocações sobre provocações, e a expressão Heil Hitler é proferida várias vezes num caudal indecente para gente que se quer considerar decente. E o ataque foi ainda mais sibilino, possivelmente reminiscência dos seus tempos de militante ativo do CDS, ao acusar-me de ter as mesmas posições que o PC. Patética esta assimilação com o Partido Comunista. Para mim, trata-se de uma necessidade ideológica dele, herdada dos velhos tempos e natural em alguém amadurecido politicamente em décadas no CDS. E com os olhos dilatados pelo ódio e com a boca quase que a espumar de raiva, berra bem alto e diz-me: “vê lá se és capaz de me dizer que se tratou de uma invasão. Diz! Diz! Diz isso, se és capaz!“. Dito isso sempre em voz bem alta para que se ouvisse em redor.

Meu caro, respondi, não te convenço, nem nunca o quis fazer mas não me convences, garanto, portanto, deixemos esta discussão. Quanto ao PC não me incomoda que me ligues a este partido mesmo que isso não tenha aqui qualquer sentido. É coisa que não me faz cócegas na barriga. E este meu conhecido, volta a insistir na mesma tecla anti-PC :” vê lá se és capaz de dizer que se trata de uma invasão”! Não vale a pena insistires, entraste no campo da provocação, respondi, não vale a pena continuar. A única resposta à altura é, perante a tua falta de civismo, é estar calado. E fiquei calado. E o conflito extinguiu-se assim, possivelmente por ausência de audiência interessada em volta para que fosse audível o escoar da sua raiva.

Curiosamente, eu tinha acabado de traduzir o texto de Timothy Snyder do New York Times, e tinha ali, bem à minha frente, naquele olhar de ódio, naquela expressão de quase espumar pela boca, o que significa a diabolização que tem sido feita à volta de Putin, branqueando todo o resto, branqueando tudo o que nos conduziu até aqui. E na diabolização ao extremo o professor Snyder é exemplar. E o mal não é apenas Putin, é a Rússia também, país que Snyder acusa de fascista. Na ótica da diabolização e na mente deste meu conhecido, não há nada a dizer sobre a responsabilidade do lado de cá na criação desta situação, não há nada a criticar quanto ao belicismo exercido durante décadas e, do seu ponto de vista, devemos reconhecer até que os Estados Unidos são a maior e mais profunda democracia do mundo e o povo americano como um todo é basicamente um povo cheio de ingenuidade e de boas intenções. Esta era, em síntese, a sua tese.

Aqui respondi-lhe que não discuto quanto à ingenuidade do americano profundo, mas não aceito que sejam considerados ingénuos aqueles que dominam ao nível do topo a máquina da Administração americana desde o segundo mandato de Reagan: os neoconservadores.

No dia seguinte, cruzo-me com este militante do CDS e pergunto-lhe com alguma amabilidade, como que a colocar a hipótese de passarmos uma esponja por cima de todo aquele ódio: já te passou a fúria de ontem, ou não? A resposta foi virar-me as costas, continuar em frente e com as mãos no ar a balançar, a simular as asas de uma ave, a águia alemã, diz-me repetidamente, de costas e em voz alta, Heil Hitler, Heil Hitler. Tudo bem claro, de uma vez por todas e definitivamente, um conhecimento pessoal que morreu ali, naquele preciso momento. Não sejamos idiotas, o respeito pelo outro exige a salvaguarda do respeito por nós mesmos.

Estamos a criar sociedades de diálogos impossíveis, onde o silêncio é a única forma possível de condescendência para quem só é condescendente com quem pensa exatamente da mesma maneira. Nesta matéria todas as discordâncias são excluídas à partida para que se possa dialogar sobre ela. Estranha forma de pensar a democracia. Deste sentido, fala-nos exemplarmente John Ganz tomando como referência exatamente os Estados Unidos com o seu artigo intitulado Nós não vivemos em sociedade. Estranho conceito de diálogo que este meu conhecido quis impor naquela muito quente tarde de uma estação que ainda não era verão. Ou aceitava as suas ideias ou era fascista, exatamente como escreve o professor Snyder de Yale, exatamente como se pensava nos tempos de Salazar e para muitos, também ainda agora. E não me digam que John Gantz não tem razão.

Vem isto a propósito das duas linhas de análise aceites pelo establishment, a deste meu conhecido e que é igualmente a do professor Timothy Snyder ou alternativamente a versão mais suave e politicamente mais sedutora, a que é defendida pela esquerda oficial americana, num texto de Matt Duss, conselheiro de Bernie Sanders.

Textos da série

  1. Júlio Mota Introdução. A impossibilidade de se falar sobre a guerra fora do pensamento único

  2. Matt Duss,  Porque é que a Ucrânia é importante para a esquerda.

  3. Júlio Mota. Reflexões em torno de um falso discurso de esquerda sobre a Ucrânia escrito por Matt Duss, um conselheiro de Bernie Sanders.

  4. Eric London. Matt Duss, Christopher Hitchens e as mentiras da “esquerda” pró-imperialista.

  5. .Andrew Bacevich, Prisioneiro da década de 1930.

  6. Timothy Snyder Devemos dizê-lo. A Rússia é fascista.

  7. David North, Timothy Snyder falsifica o papel do fascismo ucraniano.

  8. Chomsky e Barsamian, Na Ucrânia, a diplomacia tem sido excluída

3 Comments

  1. António J. Cardoso Simões, muito obrigado pelo seu comentário. Como é habitual neste tipo de séries, iremos publicando os textos que a compõem nos próximos dias, dentro das nossas possibilidades.

  2. Comentário de Elvira Fernandes, no Facebook:
    Pois, mas como não conseguem acusar o Papa de qualquer “ista”, atafulham–lhe a secretária de pedófilia para o calar sobre a guerra.

    A resposta de Júlio Marques Mota:
    Diz-me: “Pois, mas como não conseguem acusar o Papa de qualquer “ista”, atafulham–lhe a secretária de pedofilia para o calar sobre a guerra.
    Diz-me: “não conseguem acusar o Papa de qualquer “isto”. E tem razão e não conseguem. O Papa é hoje uma das figuras emblemáticas, senão mesmo a mais emblemática dos nossos tempos de crise civilizacional e esta crise é tão grave que nenhum dos políticos recentes pode servir de referência.
    Vejamos exemplos desta crise civilizacional sob o ângulo da ausência de políticos credíveis:
    a) Portugal
    António Costa: o homem foi incapaz de estipular um preço máximo para os testes de Covid em farmácia. Tanto pode pagar 10, como 15, 20, 25 ou cinquenta euros. Tanto faz!
    O António Costa que foi incapaz de refazer as carreiras médicas que a Troika destruiu e que levaram ao desastre que assistimos comas urgências hospitalares a fechar?
    Mas falamos de António Costa que defende o investimento em armas sofisticadas para a NATO, em que por cada euro de investimento em armas mortíferas o país aumenta o rendimento em 3 euros. O milagre dos pães para a guerra ???? Não acha isto argumentação da mais cacoca e populista que se veja.
    b) Inglaterra

    Em 1985, todos os ex-primeiro-ministros britânicos vivos foram convidados para o 10 Downing Street para assinalar o 250º aniversário do edifício. Macmillan, Douglas-Home, Wilson, Heath, Callaghan e o então titular Thatcher estavam todos presentes. Para quebrar o gelo, Callaghan supostamente perguntou aos outros o que pensavam ter em comum. Macmillan respondeu imediatamente: “Uma falta de princípios”. A podridão no topo do poder político aprofundou-se de forma mensurável desde então. Thatcher ajudou o seu filho a ganhar milhões em subornos para facilitar a venda de armas aos sauditas. O governo do Major estava envolvido em intermináveis escândalos de dinheiro por perguntas e de histórias de beijos, o próprio Primeiro-Ministro conduzindo tormentosos assuntos no Número Dez, enquanto o seu Secretário Chefe do Tesouro, Jonathan Aitken, acabou por ser preso por perjúrio ao negar que Riad tinha liquidado as suas contas do Hotel Ritz em Paris.
    Blair e Brown, ambos acusados de mentirem sobre isenções legais para as corridas de Fórmula 1, depois de uma doação de um milhão de libras de Bernie Ecclestone, viraram-se para se atirarem um ao outro por causa do escândalo das “comissões ocultas” que viu a Scotland Yard andar a bater à porta de vários ministros; para não mencionar a morte ainda inexplicável do denunciante David Kelly e de ter enganado o Parlamento sobre a invasão do Iraque. Cameron estava profundamente envolvido no escândalo das celebridades que envolveu a imprensa Murdoch e a sua amiga Rebekah Brooks. Theresa May, sempre tímida em relação às suas declarações fiscais, foi revelada ligada através do seu marido a esquemas de evasão fiscal dos Panama Papers.
    c) Canadá

    A 22 de Março, quando Trudeau deixou o Canadá para as reuniões do G7 e da NATO na Europa, The Globe and Mail, na primeira página, anunciou que o NDP estava disposto a “apoiar as despesas militares à custa da redução dos programas sociais”.
    Está em curso um esforço bem orquestrado para assegurar a abundância de armas, mas escassez de manteiga. As direções das empresas fornecedoras de armamento dito de defesa e os falcões da política externa conjugam novas ameaças e estabelecem objetivos de despesas militares mais elevados, enquanto que os ventos de rumores – economistas ortodoxos e especialistas dos meios de comunicação social – lançam no ar avisos sinistros sobre os perigos da irresponsabilidade orçamental e isto perante uma situação de inflação, incerteza económica e dívida pública junta com uma pandemia. A sua necessidade férrea de fuga irá assegurar que as despesas sociais se mantenham muito abaixo dos compromissos do manifesto dos Liberais, sem falar dos compromissos do NPD. As politicas que sobreviverem irão invariavelmente gerar grandes lucros para o sector privado (o envolvimento dos seguros privados nos cuidados farmacêuticos já está a ser discutido).
    Quanto ao Primeiro-ministro Trudeau basta dizer:
    No início do seu mandato, verificou-se que as férias da família Trudeau na residência privada de Aga Khan nas Bahamas tinham violado as regras de conflito de interesses. Três anos mais tarde, em 2019, a revelação de que Trudeau pressionou o seu procurador-geral no sentido de que este fosse indulgente para com os seus amigos empresários foi notícia de primeira página durante meses. Embora tenha alegado que estava apenas a proteger “empregos canadianos”, o povo canadiano não comprou esta narrativa . (…)
    O escândalo WE Charity – um contrato de 912 milhões de dólares para gerir o Canada Student Summer Grant foi concedido a uma organização que tinha pago aos membros da família Trudeau para que estes participem nos seus eventos – um escândalo que manchou o ano de 2020, e a prorrogação do parlamento de Trudeau apenas veio a agravar ainda mais a crise”
    E podíamos continuar a falar e a exemplificar quanto à falta de lideres políticos emblemáticos que possamos tomar como guias e capazes de outras respostas às crises em que nos afundam cada vez mais.
    Ora, o Papa Francisco não tem nada a ver com esta ralé de políticos politiqueiros e por isso SILENCIAM AS SUAS DECLARAÇÕES.

    Mas isto não tem nada a ver com a pedofilia. Louvemos a coragem do Papa perante a situação mas é preciso ir mais longe, é preciso ir às causas que de geração em geração de padres fazem com que a situação se repita. Terá o Papa Francisco tempo ainda, coragem sabemos que tem, para obrigar a Igreja a essa reflexão cada vez mais necessária? Esperemos que sim.
    E como comentário ao seu comentário pensa ser suficiente.

    Júlio Mota

    Elvira Fernandes – novo comentário
    A Viagem dos Argonautas gostei do seu comentário por todas as razões lá descritas, uma a uma embora façam parte de um mesmo pacote. Infelizmente, não ter princípios é requisito para
    apoiar a perfídia dos poderes instalados, e nunca pensei que iria assistir a tanta instabilidade criada por ganância.
    Quanto ao Costa sempre o achei enviesado.
    Não tenho crença nem religião mas curvo-me perante o Papa Francisco, tal como me curvaria perante João Paulo l se tivesse perdurado.

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